Se o presidente francês, Emmanuel Macron, provocou um terremoto político e pegou todos de surpresa ao dissolver o parlamento e convocar eleições legislativas antecipadas, ele também foi surpreendido, afirmam analistas, por algo que, definitivamente, não imaginava: que a esquerda, fortemente dividida, conseguiria voltar a se unir tão rapidamente.
A Nova Frente Popular, criada no dia seguinte à dissolução do parlamento francês, e que une os partidos de esquerda na França, pôs por água abaixo a estratégia do centrista Macron e pode acabar facilitando ainda mais a vitória da direita radical de Marine Le Pen que lidera as pesquisas de opinião.
O presidente contava com esse eleitorado dos partidos de esquerda para manter seus deputados e barrar a expansão de Le Pen, que pela primeira vez tem chances reais de chegar ao governo.
O líder francês, dizem especialistas, tem sinalizado em discursos que a esquerda estaria contribuindo para a vitória do Reunião Nacional (Rassemblement National) de Le Pen nas eleições legislativas.
Não é à toa que Macron tem reservado suas críticas mais duras justamente para a aliança de esquerda, o que desagrada inclusive aos seus próprios apoiadores.
“Ao se unir para as legislativas na França, a esquerda sabotou o plano do Macron”, afirmou à BBC News Brasil Thomás Zicman de Barros, pesquisador do Centro de Pesquisa Política da universidade Sciences Po de Paris.
Especialistas estimam que a esquerda não tem interesse, em termos estratégicos, de se aliar ao enfraquecido e criticado círculo de apoio do presidente francês, sobretudo após Macron ter privilegiado pautas contrárias à agenda dos partidos de esquerda promovendo reformas polêmicas, como a da aposentadoria.
“Qual seria o interesse para a esquerda de se associar a Macron que pouco estendeu a mão para esses partidos?”, questiona Barros.
“A aliança da esquerda é um golpe fatal para Macron. Ele baseou toda sua estratégia nessa desunião”, completa Gaspard Estrada, diretor do Observatório Político da América Latina da Sciences Po.
A esquerda já havia se unido nas eleições legislativas na França de 2022, com a chamada Nupes, mas a aliança apresentou problemas logo no início e desintegrou no ano passado.
Parlamento Europeu
Nas eleições para o Parlamento Europeu, em 9 de junho, socialistas, ecologistas, comunistas e a França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, considerado como esquerda radical, apresentaram candidaturas distintas.
Foi após o resultado dessa votação europeia que acabou liderada pela direita radical de Le Pen que Macron dissolveu o Parlamento francês, embora não fosse obrigado a fazer isso.
O partido de Le Pen teve mais do que o dobro do número de votos obtidos pelo partido de Macron, o Renascimento (Renaissance).
A vitória da direita radical foi vista por analistas como uma reação do eleitorado às políticas de migração, ao elevado custo das reformas ambientais e à alta inflação.
Em 24 horas, após a dissolução do Parlamento e da convocação de eleições legislativas, a esquerda se juntou.
De acordo com recentes pesquisas de intenção de voto, o Reunião Nacional, de extrema direita lidera com 36% e pode obter maioria relativa nestas eleições legislativas
Mas uma pesquisa do instituto Elabe divulgada nesta sexta-feira (28/6), indica que o Reunião Nacional e seus aliados (parte da direita moderada que se juntou a Le Pen, provocando o racha do partido Os Republicanos) já poderiam obter os 289 assentos necessários para garantir a maioria absoluta.
Isso permitiria que o Reunião Nacional triplicasse o atual número de cadeiras no parlamento, de 88.
Entretanto, outras pesquisas apontam que o partido de Le Pen, sozinho, deve conquistar entre 220 e 260 assentos, permitindo apenas uma maioria relativa.
A Nova Frente Popular, com 29%, pode terminar com algo entre 190 e 210 cadeiras, contra 149 detidas hoje pelos partidos de esquerda.
Para obter maioria absoluta é necessário um mínimo de 289 assentos, restando portanto, segundo essas pesquisas, pouco mais de 100 cadeiras a serem detidas pelo Renascimento, do presidente, juntamente com seus aliados, o que poderia inviabilizar os planos de Macron de se manter no comando pleno da França.
Avanço da esquerda
O avanço da esquerda é importante, mas não tão expressivo quanto o desabamento da coalizão de sustentação do presidente Macron, a Ensemble! (Juntos), que pode perder até quase dois terços de seus deputados.
Com 21% das intenções de voto, segundo o instituto Ifop, o centro macronista, liderado pelo seu partido Renascimento, teria entre 75 e 110 cadeiras, contra 250 da maioria presidencial antes da dissolução, o que poderia inviabilizar os planos de Macron de se manter no comando pleno da França.
Ele pode ser obrigado a ter que viver num governo de coabitação compartilhando o poder com um primeiro-ministro de um partido que se opõe a ele e com uma Câmara dividida, sem uma maioria estável caso a extrema direita não obtenha a maioria absoluta. Nesse caso, haverá uma fragmentação da representação nacional.
Os próprios partidários de Macron pediram que ele se mantivesse discreto nessa campanha e os candidatos da Ensemble! nem colocaram o rosto do presidente em seus kits por receio de sofrer rejeição devido à impopularidade do líder francês.
Segundo Gaspard Estrada, Macron considerou que seu partido chegaria ao segundo turno das eleições legislativas em várias zonas eleitorais graças à desunião da esquerda.
Desta forma, poderia repetir o mesmo que vem fazendo desde 2017, se apresentando como o único capaz de combater a direita radical e assim ganhar, mais uma vez o apoio da esquerda na votação final, como ocorreu nas eleições presidenciais de 2022.
“Mas Macron não discutiu isso com a esquerda antes de dissolver a Assembleia”, ironiza o cientista político.
Segundo turno
Diferentemente do Brasil e de vários países, as eleições legislativas na França têm dois turnos. É possível ter uma votação final com três ou mais candidatos.
Para chegar ao segundo turno, é necessário ter 12,5% dos votos dos eleitores inscritos. Quanto maior a participação do eleitorado, aumentam as possibilidades de mais candidatos chegarem ao segundo turno.
Pesquisas estimam que o índice de comparecimento do primeiro turno neste domingo (30/6) será de 66%, bem mais elevado do que o das legislativas de 2022, que foi 49%.
Candidatos menos votados podem desistir do segundo turno para fazer por exemplo uma frente contra o Reunião Nacional, abrindo caminho para candidatos com mais potencial.
Segundo analistas, isso pode efetivamente ocorrer, mas talvez não na proporção imaginada pelo presidente, já que seu partido corre agora o risco de ficar de fora na votação final em vários colégios eleitorais.
Os ecologistas já informaram que vão deixar o segundo turno se estiverem em terceiro lugar e houver um candidato da direita radical.
Mélenchon também disse que espera que nenhum eleitor de seu partido “faça a besteira” de votar no partido de Le Pen, comandado por Jordan Bardella, que poderá ser o próximo primeiro-ministro da França.
A cada eleição, o Reunião Nacional vem ampliando seus resultados.
No passado, o partido começou a atrair camadas populares, como operários, que antes votavam na esquerda. Desempregados e trabalhadores com baixa qualificação representam uma base importante de seus eleitores. O partido se estendeu a outras categorias da população.
Um dos poucos bastiões que ainda resistem à direita radical na França é a capital, Paris.
Bardella, presidente do Reunião Nacional de Le Pen, declarou que não será primeiro-ministro se seu partido não obtiver maioria absoluta no parlamento.
A Constituição francesa prevê que a política estrangeira e a Defesa são atribuições do presidente, que é o chefe das Forças Armadas.
Mas diferentemente de outras raras ocasiões em que houve um presidente da direita republicana e um primeiro-ministro socialista, ou vice-versa, agora, com um governo radical de direita, pela primeira vez no poder, haveria riscos de conflitos em várias áreas, inclusive internacional.
O Reunião Nacional é bastante crítico em relação à União Europeia e tem o hábito de boicotar votações sobre os temas mais variados.
“Corremos o risco de uma situação ainda mais caótica, com um parlamento ingovernável”, diz Jérôme Fourquet, diretor do instituto de opinião Ifop.
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