Dos 74 anos de vida, Celso de Mello está há 30 no Supremo Tribunal Federal (STF). Conhecido pela memória invejável, há 13 anos é o decano. O ministro foi escolhido a Personalidade 2019 pelo Prêmio Faz Diferença, uma iniciativa do GLOBO em parceria com a Firjan. São homenageados ainda os indicados que mais se sobressaíram em outras 16 categorias.
Celso de Mello se lembra de tudo: votos de ex-ministros proferidos há 50 anos, fatos de governos brasileiros desde o Império e passagens decisivas da história da humanidade. Tanto que escreveu, em 2014, um livro editado pelo próprio Supremo: “Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República)”.
Com 35 páginas, a obra é uma espécie de guia dos curiosos, com detalhes e fatos históricos sobre o tribunal. Um dos capítulos é intitulado “Ministros que, por mais de 25 anos, permaneceram no Supremo Tribunal”. O recordista é José Paulo Figuerôa Nabuco de Araújo. Permaneceu no cargo por 31 anos e três meses. O segundo colocado, agora, é o próprio Celso de Mello, que chegou ao tribunal em 17 de agosto de 1989, nomeado pelo então presidente José Sarney.
Na vida pessoal, Celso de Mello sofreu um revés. Ele sente dores fortes, “24 por 7”, nas palavras dele, provocadas por um problema no quadril. Ao longo de 2019, o ministro alternou a bengala com a cadeira de rodas. Depois de muito relutar, foi submetido a uma cirurgia há duas semanas. O ministro ainda está se recuperando e não pôde conceder entrevista.
Em 2018, Celso de Mello disse ao GLOBO que preferia evitar a sala de cirurgia para não sobrecarregar os colegas. Com um ministro a menos, os processos novos que chegavam ao STF teriam a relatoria sorteada só para os outros nove — o presidente da Corte não participa dessa distribuição.
Dono de hábitos peculiares, o decano não ajuda a medicina. Ele acorda e, em jejum, toma a primeira xícara de café forte do dia. Até a noite, litros do líquido são ingeridos. Durante o dia, come pouco. Até dois anos atrás, tinha o hábito de, ao fim do expediente — que se prolongava até a madrugada —, passar de carro oficial no “drive thru” do McDonald’s para comprar seus sanduíches preferidos. Depois, ia para o apartamento funcional que habita sozinho.
'Apaziguador' da corte
Interlocutores do ministro atestam que, diante de conselhos médicos, o decano mudou de vida: não vara mais as madrugadas no tribunal e baniu o fast food da dieta.
— Eu realmente gosto de trabalhar. Mas, com isso, acabo me prejudicando muito. A minha jornada é de pelo menos 14 horas por dia. Eu durmo três horas por noite só, não mais. Tem dia em que eu durmo duas horas e 45 minutos — disse o ministro ao GLOBO há dois anos, concluindo: — Acho que sou movido a cafeína.
Ao longo dos anos, além de ter adquirido conhecimento enciclopédico, Celso de Mello tornou-se uma referência para os colegas. Em um tribunal cada dia mais dividido, os outros ministros costumam consultá-lo sobre temas espinhosos. O decano também é uma espécie de apaziguador. É dele a função de acalmar os ânimos quando os colegas se desentendem — fato constante no tribunal.
— O ministro Celso de Mello, ao longo de sua vida profissional de larga sabedoria, experiência e competência, tornou-se hoje a maior autoridade moral do país em exercício ativo de um cargo público que exerce com toda a dedicação e entusiasmo — disse o presidente do STF, Dias Toffoli.
— Fidalgo, desafetado e totalmente institucional, Celso é uma combinação de memória e reserva moral do Supremo. É a ele a quem os ministros e o tribunal se dirigem nos momentos de dificuldade, de desalento ou de alegria. Celso é um líder no sentido mais pleno da palavra: lidera pelo exemplo, pelo carisma e pela honestidade dos seus propósitos e da sua conduta — disse o ministro Luís Roberto Barroso.
Em 2019, o decano se destacou pela defesa enfática das liberdades democráticas e por ter sido relator do processo que resultou na decisão do STF de comparar as práticas de homofobia e transfobia ao crime de racismo. Em um voto contundente, considerou a aversão a integrantes do grupo LGBT uma crueldade.
— O direito das minorias deve compor a agenda desta Corte Suprema, incumbida de zelar pela supremacia da Constituição e pelos direitos de grupos minoritários. Esta Corte não se curva a pressões advindas de grupos majoritários destinadas a grupos vulneráveis — disse, ao votar.
“Não há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão, de comunicação, de informação e de criação artística”
Em 1º de agosto, o STF decidiu que a demarcação de terras indígenas deveria ficar com a Funai, após segunda tentativa do governo Bolsonaro de transferir a função para o Ministério da Agricultura. No julgamento, Celso de Mello deixou recados claros:
— O regime de governo e as liberdades da sociedade civil muitas vezes expõem-se a um processo de quase imperceptível erosão, destruindo-se lenta e progressivamente pela ação ousada e atrevida, quando não usurpadora, dos poderes estatais, impulsionados muitas vezes pela busca autoritária de maior domínio e controle hegemônico sobre o aparelho de Estado e sobre os direitos e garantias básicos do cidadão.
Direto ao ponto
A crítica ao que considerou atos de censura também foi destaque em palavras recentes do decano. Em meio à polêmica sobre retirar ou não do ar uma reportagem da revista “Crusoé”, ele escreveu, em nota, com exclamação:
“A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República!”
Antes de ser ministro do STF, Celso de Mello foi promotor do Ministério Público de São Paulo. Nesse cargo, foi fichado no Serviço Nacional de Informações (SNI) por dois episódios, embora nunca tivesse participado de qualquer grupo de militância contra a ditadura.
Como promotor, elaborou um parecer para licenciar uma diretoria estudantil que o regime militar considerava subversiva. A segunda menção no SNI foi por um discurso proferido na inauguração do fórum de Osasco, em São Paulo. Com cerca de 500 pessoas no auditório, ele disse duras palavras contra o Ato Institucional nº 5, que aprofundou a repressão na ditadura.
— Ora bolas! Eu não tenho que prestar continência a ninguém — disse o ministro ao GLOBO há dois anos, ao se lembrar daquela época.
O decano participou de seu primeiro julgamento histórico em dezembro de 1994. Na época, o STF absolveu o ex-presidente Fernando Collor de Mello das acusações de corrupção passiva. Celso entendeu que não havia provas suficientes para condená-lo e destacou a importância de não haver um julgamento sumário, sem a observação dos devidos procedimentos jurídicos. Esse e outros casos deram ao ministro o rótulo de garantista, ou seja, de defensor das garantias legais dos acusados, inclusive de que possam recorrer em liberdade até o último recurso judicial. Ele foi um dos que votaram, no ano passado, contra a prisão de condenados por tribunal de segunda instância. A posição foi majoritária e mudou a jurisprudência da Corte.
Em 2012, em duro voto no julgamento do mensalão, Celso de Mello chamou os políticos corruptos de “marginais do poder” e disse que o caso foi um verdadeiro assalto à administração pública, pôs em risco a legitimidade do processo democrático e a integridade do sistema financeiro nacional. Ele votou, na maioria dos casos, pela condenação, inclusive de um velho conhecido: o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que morou com Celso de Mello em uma pensão em São Paulo, em 1968. Celso não se declarou suspeito para julgar e condenar o ex-colega, apontado como chefe da quadrilha responsável por desviar dinheiro público e comprar o apoio de deputados no Congresso Nacional. Segundo o decano, embora coabitassem, os dois nunca foram amigos.
Celso de Mello parece viver de toga. Embora tenha a admiração unânime dos colegas de trabalho, ele não os encontra fora do tribunal. Nunca vai a restaurantes, cinema ou eventos sociais.
— Eu não frequento nada, não vou a recepções. Agradeço o convite, mas nunca vou — disse ao GLOBO.
Vida discreta
A vida pessoal do ministro é restrita ao contato com as duas filhas já adultas, que moram em São Paulo, em visitas mútuas nos fins de semana. Em qualquer das duas cidades, passeiam juntos em shoppings. Com o agravamento do quadro de saúde, o ministro usa um carrinho fornecido pelos estabelecimentos para se locomover entre as lojas. Sempre para em alguma grande livraria.
Ao completar 75 anos em novembro, Celso de Mello será obrigado a se aposentar, dando a vaga para a primeira nomeação do presidente Jair Bolsonaro para o STF.
Jurados: Alan Gripp (diretor de Redação do GLOBO); Ancelmo Gois, Lauro Jardim, Merval Pereira, Míriam Leitão (colunistas); e Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira (presidente da Firjan).
Cinco momentos do decano
Homofobia
Celso de Mello foi relator do processo em que o STF equiparou as práticas de homofobia e transfobia ao crime de racismo. “A homofobia representa forma contemporânea do racismo”, afirmou.
Defesa do STF
Após Bolsonaro se comparar a um leão cercado por hienas — entre elas, o STF —, Celso disse que o presidente parecia não ver o “limite na compostura que um chefe de Estado deve demonstrar”.
Poderes
O decano criticou a reedição, por Bolsonaro, de medida provisória já rejeitada pelo Congresso: “É preciso repelir qualquer ensaio de controle hegemônico do aparelho de Estado por um dos poderes”.
Democracia
No julgamento sobre a prisão de condenados em segunda instância, Celso voltou a defender a democracia contra “manifestações de grave intolerância que dividem a sociedade civil”.
Liberdade de expressão
Em maio, o decano disse que a “garantia constitucional da imunidade parlamentar” se estende para manifestações em redes sociais, assim como para entrevistas e pronunciamentos.
Jurados
Alan Gripp (diretor de Redação do GLOBO); Ancelmo Gois, Lauro Jardim, Merval Pereira, Míriam Leitão (colunistas); e Eduardo Eugenio Gouvêa Vieira (presidente da Firjan).
O Globo
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