O primeiro julgamento na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de casos revelados na Lava-Jato estabeleceu, esta semana, um precedente que tende a livrar de punições ex-administradores da Petrobras em diversos outros processos, entre eles a ex-presidente Dilma Rousseff e os ex-ministros Guido Mantega e Antônio Palocci.
Em decisão dividida e que é alvo de debate no meio jurídico, o colegiado da CVM entendeu que prescreveram as acusações contra oito ex-executivos, entre eles os ex-presidentes da estatal José Sérgio Gabrielli e Maria das Graças Foster.
Com isso, as supostas irregularidades sequer foram analisadas pelos diretores do órgão. Os processos tratavam da contratação de navios-sonda pela petrolífera.
O argumento foi de que esses executivos eram acusados de ter faltado com dever de diligência - isto é, não velaram pelo interesse da empresa como seus cargos exigiam, deixando de questionar a contratação das empresas de navios-sonda. Como essa é uma violação administrativa que, a princípio, não constitui crime, o prazo de prescrição legal é de cinco anos. Por isso, as acusações sequer foram analisadas.
Nos mesmos processos, porém, os ex-diretores da área internacional da Petrobras, Nestor Cerveró e Jorge Zelada, foram condenados a multas de, respectivamente, R$ 1,2 milhão e R$ 500 mil.
Isso porque foram acusados de tomar decisões sobre as contratações dos navios-sonda após receberem "vantagem indevida" e já haviam sido processados pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro na esfera criminal pela mesma conduta.
Como prevê a lei 9.873, de 1999, quando um órgão como a CVM julga violações administrativas que também são crimes, o prazo de prescrição que vale é o do Código Penal. O colegiado considerou que, nos casos de Cerveró e Zelada, havia crimes claros, e a prescrição só deveria ocorrer após 16 anos.
A questão do prazo é crucial porque as supostas irregularidades ocorreram entre 2006 e 2009, enquanto os processos só começaram em 2016 na CVM, depois das revelações da Lava-Jato. Logo, os ex-diretores só poderiam ser julgados se houvesse prolongamento de prazo.
'Impactos futuros'
A tese da prescrição foi defendida pelo diretor Gustavo Gonzalez, que relatou os dois processos. Foi a primeira vez que o colegiado da CVM se manifestou de forma tão direta sobre a prescrição de processos administrativos contra pessoas que não eram acusadas de crimes, observou o advogado e ex-diretor da autarquia Nelson Eizirik, que defendia nos julgamentos os ex-diretores Almir Barbassa, Guilherme Estrella e Maria das Graças Silva Foster.
- O precedente pode impactar futuros julgamentos da CVM que envolvam fatos que são objeto de denúncia ou julgamento na esfera penal, envolvendo Lava-Jato ou não - disse Carlos Augusto Junqueira, sócio da área de mercado de capitais do escritório Cescon Barrieu.
Ele observou que o entendimento da CVM só vale em casos em que a investigação da CVM começou cinco anos após a suposta irregularidade e nos quais não haja processo penal contra o acusado pela mesma conduta. É essa a situação de diversas outras acusações relacionadas à Lava-Jato que tramitam na CVM.
- Mas a decisão do colegiado não foi unânime, não foi um entendimento pacífico. Ela pode, eventualmente, ser revertida diante de outros casos concretos - ponderou Junqueira.
Fatos e pessoas
O placar da votação foi 3 a 2. Se opuseram à prescrição os diretores Henrique Machado e Carlos Rebello. Em seu voto, Machado concordou com o argumento da acusação. Ela defendia que o prolongamento do prazo pode acontecer até quando os acusados não foram processados na esfera penal porque "a prescrição é fenômeno que se conecta com fatos e, não, com pessoas”.
Segundo essa tese, a falta do dever de diligência dos ex-diretores estava diretamente ligada aos crimes de Zelada e Cerveró. A área técnica da CVM queria, portanto, que as irregularidades dos ex-diretores também fossem classificadas como crimes no que diz respeito à prescrição.
Gustavo Flausino Coelho, sócio do Coelho Vasques Advogados, sustenta que há o que se discutir na tese de que as acusações prescreveram:
- A falta do dever de diligência poderia ser também enquadrada como corrupção, que é crime.
Um ex-membro do colegiado da CVM que preferiu não ser identificado argumentou que, do ponto de vista técnico, a prescrição faz sentido, mas resulta de uma interpretação que não é 100% sólida. Para ele, a alta visibilidade de casos da Lava-Jato torna a decisão ainda mais sensível.
- É uma bola que ficou dividida em 3 a 2. Moralmente, talvez seria melhor que o placar fosse o contrário, de 2 a 3. E há argumentos para os dois lados - disse essa fonte. - Agora, todas as atenções se voltarão para o próximo julgamento relacionado à Lava-Jato. Ele poderá consolidar uma jurisprudência.
Desconforto entre técnicos
Mas Nelson Eizirik, que defendeu Graça Foster, sustenta que "em matéria de direito penal, você tem que levar em consideração a pessoa, não o fato".
- Você só pode aplicar um prazo de prescrição maior a quem é acusado de ter cometido um crime. Os ex-diretores foram acusados de falta de dever de diligência, não de crimes - disse Eizirik. - Mas isso não quer dizer que essa decisão seja permanente. Mudando-se a composição do colegiado, essa visão pode mudar também.
O resultado do julgamento desta semana causou desconforto em alguns membros da área técnica da CVM, que temem que o precedente gere uma prescrição em cadeia em processos sobre a Lava-Jato. Há pelo menos outros sete processos sancionadores envolvendo a Petrobras na autarquia, como o que apura irregularidades na construção da Refinaria Abreu e Lima e do Comperj e aquele sobre a contratação da SBM Offshore.
- A rigor, apenas os delatores, aqueles que colaboraram com a Lava-Jato, serão condenados na CVM. Nos outros processos, as acusações contra ex-administradores também são por violação ao dever de diligência. Depois do julgamento dessa semana, a tendência é que todas essas acusações estejam prescritas - queixou-se uma fonte da CVM, que preferiu não ser identificada porque trabalha diretamente com esses casos.
O Globo
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