Interpretações distintas sobre a lei do abuso de autoridade, que só vai vigorar a partir de janeiro, têm provocado decisões em sentidos opostos em tribunais do país. Desde que a norma foi promulgada, juízes vêm negando pedidos, especialmente de bloqueio de recursos em bancos, alegando que o texto dá margens para que a medida seja classificada como crime. Em pelo menos dois casos, desembargadores já reverteram despachos e autorizaram a penhora, argumentando que não havia fundamento na cautela adotada pelos juizados de primeira instância.
Uma pesquisa em diários oficiais localizou processos que citam a legislação em sete estados: Rio, São Paulo, Distrito Federal, Goiás, Bahia, Mato Grosso, Sergipe e em dois Tribunais Regionais do Trabalho. O artigo lembrado com mais frequência prevê prisão de um a quatro anos para quem “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”.
No Distrito Federal, um juiz negou pedido de penhora alegando que a medida poderia “se realizar em quantia excessiva”. Na análise do recurso, a desembargadora Nídia Corrêa Lima discordou da interpretação e assinalou que o “receio” do magistrado era “absolutamente desprovido de fundamento”. Em outra ação no DF, um juiz perguntou ao devedor se ele concordava com o pedido de penhora de ativos financeiros e com o valor cobrado. Já no recurso, o desembargador determinou o bloqueio, ressaltando que o processo deve buscar o “resultado útil” e que a lei não está em vigor.
Lei “intimida”
Já o juiz Flávio Ferrari, da Bahia, ponderou que a legislação não começou a valer, mas afirmou que o número elevado de processos e o fato de contar só com dois servidores poderia fazer com que o eventual excesso da medida não fosse corrigido a tempo. No despacho, ele afirmou que vai aguardar a manifestação de tribunais superiores permitindo “que o magistrado exerça a atividade jurisdicional sem receio de ser-lhe imputado a pecha de criminoso”.
No Rio, o juiz Leopoldo Mendes Júnior adotou interpretação semelhante, assinalando que mesmo decisões tomadas antes da vigência da lei podem ter repercussões no período em que ela estiver vigorando. Ele pontuou que não há “previsibilidade” sobre a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da legislação.
Já em São Paulo, a juíza Patrícia da Conceição Santos destacou que a futura lei “não pode impossibilitar a marcha processual”. Ao mesmo tempo em que autorizou a medida, a magistrada também determinou que recursos bloqueados em excesso deveriam ser liberados em 24 horas.
O foco da preocupação é o sistema BacenJud, usado pela Justiça para bloquear eletronicamente recursos em contas. Com CPF ou CNPJ do alvo em mãos, magistrados podem tornar indisponíveis os valores necessários para o pagamento de dívidas ou ressarcimento aos cofres públicos. Caso sejam encontradas contas em mais de uma instituição financeira, é possível que os valores ultrapassem o do pedido, já que cada banco cumpre a ordem de forma independente.
Professor de direito penal da Fundação Getulio Vargas (FGV), Davi Tangerino diz que as decisões prévias buscam fortalecer o questionamento no Supremo:
— A lei deixa claro que só é crime quando a decisão tem a finalidade de prejudicar alguém. O desconforto vem de quem estava acostumado a “canetar” à vontade, e agora terá que fundamentar a decisão — defende Tangerino.
O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Jayme de Oliveira, afirma que a lei de abuso de autoridade “intimida e amordaça” os magistrados.
— Os juízes já sabem de antemão o que vai acontecer com eles e estão tomando providências dentro do que os compete — justifica.
O Globo
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