O governo da Argentina impôs, no início desta semana, um limite diário para o número de cidadãos e residentes que poderão retornar ao país de viagens ao exterior.
A cota diária de até 2.000 pessoas foi reduzida em 70%, permitindo a entrada de apenas 600 argentinos por dia, o que equivale a dois aviões comerciais. A medida, considerada inconstitucional por juristas, visa conter a expansão da variante delta – identificada pela 1ª vez na Índia.
Com a decisão, a cada dia 1.400 pessoas que tinham passagem de volta ficarão no exterior sem autorização para embarcar.
Com a remarcação de voos, as companhias aéreas projetam que alguns dos retornos que aconteceriam em junho, passem para agosto ou setembro. A estimativa é de que 45 mil argentinos estejam de viagem no exterior, especialmente nos EUA – para onde foram em busca de vacinas.
As novas regras também impõem que, quem regressar ao país a partir desta quinta (1º), terá de cumprir um isolamento em um "hotel sanitário", pago pelo próprio viajante. As medidas valem para os argentinos e para os residentes estrangeiros no país.
Os turistas estão proibidos de entrar na Argentina desde dezembro. A única porta de entrada ao país é o aeroporto de Ezeiza, na região de Buenos Aires. Todas as fronteiras terrestres também estão fechadas para os próprios argentinos desde dezembro.
É um caso único no mundo: o país impede que os seus próprios cidadãos voltem para o território. As novas regras, no entanto, não incluem a classe política, isenta da proibição de retorno e de quarentena.
Medida é inconstitucional, dizem juristas
Daniel Sabsay, especialista em Constituição argentina, disse que a Carta Magna garante o direito de circular, de transitar e de entrar no território argentino, e que o decreto acaba com esse direito.
"Direitos, princípios e garantias não podem ser alterados por leis, mas, neste caso, nem uma lei é; é um decreto e é inconstitucional", acusa o jurista.
"Pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mesmo quando a restrição de um direito estiver baseada na lei, deve ser demonstrado que a lei é a menos lesiva", explica Sabsay.
"Neste caso, é a decisão mais prejudicial porque suprime o direito a transitar, força a uma espécie de confinamento no exterior sem um horizonte para a volta e obriga a pessoa a arcar com os gastos. E quando conseguirem voltar ao país, devem ser confinadas em um hotel pelo que também devem pagar."
O governo argumenta que essa é uma medida para conter a chegada ao país da variante delta e que os argentinos, ao viajarem ao exterior, assinam uma declaração juramentada que os adverte sobre os riscos de sair do país e de não poderem voltar com as novas restrições.
"Advertimos que a assinatura de uma declaração juramentada implica responsabilidades. As pessoas que decidiram viajar aceitaram as consequências econômicas e sociais que significa viajar durante uma pandemia", defende Florencia Carignano, diretora do Departamento de Migrações.
"Uma declaração juramentada não substitui a Constituição", recorda Sabsay.
Os argentinos são controlados ao retornarem ao país: precisam fazer três testes de PCR. Um no país de origem do voo; outro, ao aterrissarem em Buenos Aires; um terceiro sete dias depois de um isolamento.
A restrição aos voos também afeta a chegada, nos mesmos aviões, de carregamentos do exterior como componentes e medicamentos. Foram, por exemplo, perdidas cinco córneas para transplantes que chegariam de um voo cancelado dos EUA.
Medidas inócuas
No ano passado, a Argentina teve a quarentena mais prolongada e rígida do mundo. Durou 233 dias. Mesmo assim, o país aparece entre os que pior administram a pandemia.
Nas últimas horas, um novo ranking da agência Bloomberg, que avalia a gestão da pandemia, coloca a Argentina no último lugar entre os 53 países avaliados.
São países com um PIB de, pelo menos, US$ 200 bilhões (cerca de R$ 800 bilhões). São avaliados a taxa de mortalidade, quantidade de testes, taxa de positividade, acesso à vacina, rigidez das restrições, crescimento do PIB e até quantidade de voos.
A Argentina ficou no final da fila, pior do que a Colômbia, em penúltimo lugar, e do que o Brasil, antepenúltimo.
"A Argentina aparece em último lugar porque a sua gestão da pandemia é muito ruim e está marcada pela alta discricionariedade das medidas de movimento das pessoas", explica o analista internacional Sergio Berensztein.
O ranking é liderado pelos Estados Unidos; o que fortalece o argumento dos argentinos no exterior. A maioria viajou aos Estados Unidos para se vacinar e voltar à Argentina imunizada. Voltam de um país com muito menos contágios e mortes.
"O risco maior não é de que levem o vírus, mas que se contagiem na Argentina, onde a variante Delta já está presente, mas ainda não aparece. É só questão de tempo para se multiplicar. Não há argumentos científicos para suspender os voos", garante o médico argentino Conrado Estol, preso em Nova Iorque e impedido de voltar ao trabalho na UTI. "Preciso voltar para ver os meus pacientes. É insólita esta situação", exclama Estol.
Pária no cenário Internacional
As medidas arbitrárias de restrição acontecem também na economia. A proibição de movimento de capitais, os rígidos controles de câmbio e de preço, as cotas para exportações e para a compra de moeda estrangeira levaram a agência classificadora de risco Morgan Stanley a rebaixar a Argentina a país "stand-alone".
O mercado esperava que a Argentina fosse rebaixada de 'país emergente', ao lado de Brasil, México, Colômbia e Chile, a 'país de fronteira'. No entanto, a queda da Argentina foi para a última categoria, ficando ao lado de países como Botswana, Zimbabwe, Líbano e Palestina.
Um país "stand-alone" significa que faz o seu próprio jogo, com regras arbitrárias fora do mercado. A consequência é que o país e as suas empresas ficam sem financiamento externo e sem investimento. Aumenta o desemprego e a pobreza.
"O rebaixamento da Argentina é como cair da segunda divisão não para a terceira, mas para fora do campeonato. É como passar a jogar uma pelada de bairro. Passamos à última categoria, uma espécie de limbo com países que não podem ser classificados porque têm políticas econômicas tão absurdas que não entram em nenhuma previsibilidade. Os países nessa categoria são os que perderam o interesse para todos os investidores", avalia Sergio Berensztein.
Política externa de isolamento
Tanto na Organização dos Estados Americanos (OEA) quanto na Organização das Nações Unidas (ONU), a Argentina tem apoiado os regimes de Nicolás Maduro, na Venezuela, e de Daniel Ortega, na Nicarágua. Esse alinhamento com regimes autocráticos já foi criticado pela Anistia Internacional e pela Human Rights Watch.
Em carta, a Anistia Internacional pediu que a Argentina "adote uma posição clara contra as violações da ditadura de Nicolás Maduro". Foi depois que o país se retirou da demanda contra a Venezuela na Corte Penal Internacional e do Grupo de Lima por reconhecer Nicolás Maduro como presidente legítimo da Venezuela.
Já a Human Rights Watch criticou a posição "seletiva" da Argentina em matéria de direitos humanos ao não condenar as violações na Nicarágua.
"Essa proximidade com Venezuela e com Nicarágua não favorece a posição da Argentina no mundo. Apoiar um regime como o de Maduro enquanto mais de cem países no mundo advertem sobre uma ditadura, significa defender uma ditadura. Está claro que a Argentina está numa posição de defesa dos regimes de Venezuela e Nicarágua. Para o Brasil, isso é muito claro e o governo brasileiro está cansado", critica o ex-chanceler argentino, Jorge Faurie (2017-2019).
Um grupo de intelectuais argentinos publicou uma carta na qual adverte como a Argentina vai em direção aos regimes que defende, Nicarágua e Venezuela, em detrimento da democracia.
Intitulada "A democracia argentina na encruzilhada: neogolpismo ou progresso", o grupo alerta para o "grave perigo" do que está acontecendo no país e denuncia "um programa autoritário com restrições de liberdades, violência estatal, administração opaca e decomposição democrática".
"O governo aponta a avançar contra a liberdade de imprensa, a colonizar a Justiça e perpetuar-se no poder entre outras iniciativas de gravidade institucional", denunciam.
RFI
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