No próximo fim de semana, num evento na cidade italiana de Assis, o papa Francisco vai assinar uma nova encíclica, a terceira de seu pontificado, voltada para a irmandade entre os povos num mundo em constante conflito e agora marcado pelo coronavírus.
Antes de ser publicada, a carta papal vem provocando discórdia entre os fiéis, em especial nas feministas católicas. A razão: o uso da palavra "irmãos" no título, sem mencionar a equivalente "irmãs".
Tirada de um escrito de São Francisco de Assis, patrono dos pobres e dos animais e santo que inspirou Jorge Mario Bergoglio a adotar o nome Francisco, a expressão "Fratelli tutti" (todos irmãos, em italiano) foi divulgada no último mês como o título da nova encíclica e imediatamente virou alvo de críticas de grupos de mulheres, que reclamaram não serem representadas.
A polêmica se somou a outras num momento de especial tensão para o Vaticano, que viu na última semana a demissão de um dos principais cardeais do Clero Romano, Angelo Becciu, auxiliar próximo do papa que foi defenestrado pelo próprio Bergoglio por supostamente estar envolvido em corrupção - o caso está em investigação, na Justiça vaticana e na comum.
Representantes de grupos de mulheres católicas, como Paola Lazzarini, da associação Mulheres para a Igreja, notaram a contradição: o título de uma encíclica sobre irmandade e fraternidade não contempla as mulheres.
"Esse é um fragmento de um problema muito maior que existe dentro da Igreja Católica. Na missa também estamos habituadas a ouvir sempre expressões masculinas. Os documentos são todos escritos por homens", afirma a polonesa Zuzanna Flisowska, integrante da Voices of Faith, organização que defende mais espaço para as mulheres na igreja.
A crítica é dirigida ao pontífice que mais atuou para dar protagonismo às mulheres no Vaticano.
Francisco promoveu várias delas a cargos de direção, embora o poder na Santa Sé seja predominantemente masculino e clerical. A realidade ainda é permeada de situações típicas de um mundo muito atrasado: há muitos casos, em Roma e alhures, de freiras e irmãs que servem padres, bispos e cardeais como domésticas, sem qualquer direito e remuneração, para não falar dos casos de abuso sexual, debate que vem ganhando corpo internamente nos últimos anos. As mulheres representam a maioria dos fiéis católicos em todo o mundo, e são também as que mais frequentam as igrejas.
Numa carta encaminhada ao papa, assinada por trinta organizações femininas da Europa, África, Ásia e América Latina, as católicas argumentam: "o substantivo masculino distanciará muitos em um momento em que as mulheres em muitos idiomas e culturas diferentes sofrem por ouvir que o masculino é entendido em um sentido genérico". Elas mencionam a "explícita e dolorosa" exclusão das mulheres na palavra de abertura da encíclica ao citar a tradução para idiomas como inglês e alemão.
"Na melhor das hipóteses será uma distração, na pior um sério obstáculo", ressalta a carta, dizendo que tudo seria resolvido se incluíssem a palavra irmãs ("sorelle", em italiano) ao lado de irmãos. "Sabemos que uma mudança assim pequena estaria em sintonia com o espírito de São Francisco e com as suas intenções", escreveram as mulheres ao pontífice. "Nós te convidamos a demostrar que é realmente aberto ao diálogo e que está escutando a voz das mulheres".
'Mansplaining'
O Vaticano se manifestou, o que foi uma surpresa para algumas das mulheres das organizações que assinaram a carta — "anos atrás, esse tipo de crítica não era nem levada em consideração", disse Paola Lazzarini.
A instituição comentou a polêmica por meio de um editorial escrito pelo diretor editorial do dicastério (similar a ministério) para a comunicação, Andrea Tornielli, e num artigo assinado por um especialista em São Francisco de Assis publicado no jornal L'Osservatore Romano, órgão oficial da Santa Sé.
No texto veiculado no site do Vaticano, Tornielli escreveu que "seria um absurdo pensar que o título, na sua formulação, tenha a intenção de excluir mais da metade dos seres humanos, ou seja, as mulheres". Ele ressalta que a "fraternidade e a amizade", temas da encíclica, "indicam aquilo que unem homens e mulheres". "Por isso não são possíveis mal-entendidos ou leituras parciais da mensagem universal e inclusiva das palavras 'fratelli tutti'", escreveu.
Já o frade e historiador suíço Niklaus Kuster, em artigo no L'Osservatore Romano, argumentou que "as traduções pouco sensíveis ignoram" que, na obra citada de São Francisco de Assis, ele se refere "a todas as mulheres e todos os homens cristãos", já que se trata de uma irmandade universal.
A resposta de Andrea Tornielli gerou ainda mais críticas. Segundo Paola Lazzarini, trata-se de um típico caso de "mansplaining", termo usado para definir um ato em que o homem tenta explicar a uma mulher, em tom de superioridade, algo simples ou que ela já sabia. "Não temos liberdade de dizer que não nos sentimos incluída? Parece mais importante salvar uma citação do que ir de encontro a uma reinvindicação", disse a fundadora da associação Mulheres para a Igreja.
Zuzanna Flisowska afirma que houve uma mudança quanto ao uso da linguagem, que tornou-se mais inclusiva nos últimos anos, e diz que a Igreja também deve levar isso em consideração, não sendo mais possível repetir conteúdos de quase mil anos atrás - caso da passagem escrita por São Francisco - para justificar um título que exclua as mulheres.
"Talvez esse seja o papa mais aberto de todos que conhecemos, mas essa é uma questão de mentalidade que envolve todo mundo. Sendo um pontífice sensível aos excluídos, ele deveria se sensibilizar sobre isso", comenta Flisowska.
A encíclica é o grau máximo das comunicações pontifícias e é dirigida aos bispos e fiéis, constituindo uma espécie de corpo doutrinário da Igreja Católica sobre diversos assuntos. Esta será a terceira publicada por Bergoglio desde que ele virou papa, em 2013.
O Vaticano não deu nenhum sinal de que vai alterar o título do documento, que será assinado por papa Francisco no sábado (dia 3) e divulgado no domingo (4, dia da festa de São Francisco de Assis). A Santa Sé confirmou apenas que o título — "Fratelli tutti" — será mantido em italiano também nas traduções da carta para outros idiomas, como aconteceu com sua encíclica anterior, a "Laudato Sí", de 2015, voltada para o meio ambiente.
BBC
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