Em pleno recesso, no dia de Natal, senadores foram surpreendidos pela notícia de que o presidente Jair Bolsonaro sancionou o pacote anticrime com vetos, mas manteve na lei uma iniciativa da Câmara que ganhou o apelido de emenda "anti-Moro".
A criação do juiz de garantias, incluída pelos deputados, foi uma resposta política ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que acusou o golpe. No Senado, a expectativa e o acordo eram que o trecho seria riscado do texto pela caneta de Bolsonaro. Por isso, sua decisão foi recebida como uma afronta.
No retorno das atividades legislativas, em fevereiro, o presidente deve sofrer pressões e até retaliações por parte de senadores mais alinhados a Moro, especialmente os do grupo "Muda Senado" - bancada informal que reúne um quarto dos parlamentares da Casa.
Para garantir a aprovação do já desidratado pacote anticrime ainda em 2019, senadores aceitaram apenas carimbar o texto que saiu da Câmara. O projeto passou a jato pelo Senado, exatamente uma semana depois de ser aprovado pelos deputados, no último dia 11. Bolsonaro teria até o 6 de janeiro para sancionar ou vetar a matéria, mas o fez em edição extra do Diário Oficial da União na calada da noite de terça-feira.
O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), foi o fiador do acordo com parlamentares que concordavam com a maior parte do projeto e já se mobilizavam para tentar manter o hipotético veto em sessão conjunta do Congresso, no início de 2020.
Ao GLOBO, ele reconheceu que havia "o compromisso de defender a manutenção dos vetos", mas apontou que o presidente "preferiu acatar" a proposta dos deputados. E deu o assunto por encerrado, conclamando todos a trabalhar por uma "rápida e boa regulamentação".
Blindagem ao primogênito
"Inacreditável". "Inexplicável". "Decepcionante". Os adjetivos usados pela senadora Simone Tebet (MDB-MS) para classificar a decisão de Bolsonaro dão o tom da reação dos parlamentares que participaram do acordo. E carregam peso mais que simbólico, já que ela preside e controla a pauta da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Trata-se do mais importante colegiado da Casa, por onde devem passar todos os projetos, inclusive os de interesse do governo.
Como o veto esperado não veio, resta agora apenas a solução jurídica, que deve ser adotado pelo Podemos. O líder do partido no Senado, Alvaro Dias (PR), já avisou que a legenda vai ao Supremo questionar a constitucionalidade da criação do juiz de garantias. A crise também deve ser levada, portanto, para o Poder Judiciário.
Nos bastidores, começa a ganhar força a tese de que a decisão de Bolsonaro seria uma tentativa de proteger seu primogênito, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), investigado por suposta participação em esquema de rachadinha no seu gabinete na época em que era deputado estadual do Rio.
Ao sinalizar que a medida poderia ser positiva, em conversa com jornalistas no último sábado, o presidente comentou que "um juiz pode cometer absurdos na comarca dele". Na mesma entrevista, ele declarou que há um abuso do Ministério Público do Rio nas investigações envolvendo seu filho e defendeu um controle sobre o órgão.
Há ainda quem avalie a canetada do chefe do Palácio do Planalto como um gesto para ganhar o apoio do centrão, que na Câmara avalizou a criação do juiz de garantias, ou para tentar enfraquecer Moro, ainda tido como possível adversário nas eleições de 2022.
Na Câmara, por outro lado, o presidente tende a ganhar pontos. Relator do pacote anticrime, o deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), disse que, no conjunto, Bolsonaro aprovou a essência do texto do grupo de trabalho composto para formular o substitutivo que virou lei e falou em "belo presente" para o Brasil. O presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por sua vez, só teceu elogios a Bolsonaro, com quem tem relação conturbada.
- Parabenizo o presidente Bolsonaro que sancionou os projetos dos ministros Alexandre Moraes e Moro e principalmente valorizando o trabalho do grupo de trabalho da Câmara e os plenários da Câmara e Senado - afirmou Maia ao GLOBO.
Previsão de confronto
Entre senadores, o clima é de insatisfação. O entendimento era que Bolsonaro seguiria a recomendação de Moro e vetaria o trecho do projeto incluído pela Câmara dos Deputados. Por isso, eles aceitaram votar o mesmo texto mesmo sem concordar com a íntegra e, assim, permitir sua aprovação ainda em 2019.
O senador Alvaro Dias (Podemos-PR), líder de seu partido no Senado, afirmou que a suposição dos senadores era de que o veto seria “óbvio”. Ele disse ainda que sua equipe vai trabalhar o quanto antes em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no STF para questionar a criação do juiz de garantias nos próximos 30 dias, antes de a lei entrar em vigor.
- O presidente infelizmente não vetou, como eu imaginava, o juiz de garantias inserido no projeto anticrime. Defendo o veto, inclusive pela inconstitucionalidade, pois como mexe com organização judiciária teria que a iniciativa partir do Judiciário - explicou Dias, que é líder da bancada do Podemos no Senado.
Lasier Martins (Podemos-RS) diz que o projeto foi desfigurado pelos deputados e, para que não fosse “totalmente inutilizado”, Moro teria pedido aos senadores para que o aprovasse mesmo assim.
- A manutenção do juiz de garantias só servirá para protelações, além de desprestígio ao juiz original da causa. Utilizar dois juízes num mesmo processo é não conferir credibilidade e preparo ao juiz instrutor do processo. Por outro lado, é inconstitucional o segundo juiz por alterar a Lei de Organização judiciária - diz Lasier.
Ao GLOBO, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, classificou a decisão do presidente como "inacreditável, inexplicável e decepcionante". Ela frisou que havia um acordo com o líder do governo Bolsonaro no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), para manter o eventual veto à criação do juiz de garantias no Congresso.
- Vai gerar caos e inviabilizar o sistema criminal brasileiro - comentou a senadora, que está no Chile.
'Presente de Natal'
Além do elogio do presidente da Câmara, outros deputados celebraram o fato de Bolsonaro não ter vetado a criação do juiz de garantias. Na oposição, o fato foi comemorado. Em sua conta no Twitter, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) afirmou que o juiz das garantias é um “presente de Natal para o povo brasileiro” e aproveitou para criticar Moro. “É a superação do modelo de juiz que se contamina, como foi a atuação do Sergio Moro, para que tenhamos mais julgamentos isentos no Brasil”, completou na mensagem.
Relator do pacote anticrime no grupo de trabalho na Câmara, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG) avaliou que os vetos não tiraram a essência do projeto aprovado no Congresso e o país “ganha um belo presente” com a lei. O deputado acredita que, mesmo assim, pelo menos três vetos têm fundamentação mais fraca e devem ser derrubados pelos congressistas.
- Metade [dos vetos], ainda acho que a Câmara derruba. Sobre uso de armas de fogo de uso restrito, nas razões do veto, o presidente avaliou que pode prejudicar policiais ou agentes de segurança. Mas [o armamento] é de uso proibido pelos civis, não pelos policiais. Esse, eu acho que a Câmara derruba — afirmou o relator.
O deputado mineiro também citou vetos aos crimes contra a honra na internet e à prioridade da Defensoria Pública na defesa de agentes de segurança investigados por uso letal da força como pontos que não estão bem fundamentados. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), também criticou o veto à possibilidade de triplicar a pena em casos de crimes contra a honra propagados em redes sociais, afirmando que trata-se de “favorecimento à criminalidade”.
— É o caso de um dispositivo muito bom incluído pelo Congresso Nacional, que estabelecia o aumento de pena para aquelas milícias digitais que atuam na internet atacando, caluniando, desqualificando pessoas, e espalhando crimes também. Neste caso, o presidente claramente favorece os criminosos de sua base, os seus criminosos de estimação — disse o líder da Oposição ao governo no Senado.
O Globo
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