A organização social Pró-Saúde, denunciada na Lava Jato por pagar propina em troca de contratos na gestão do ex-governador de Sérgio Cabral, ressurge em nova investigação no Rio. Desta vez, a entidade é suspeita de usar irregularmente recursos do governo fluminense, na gestão de Wilson Witzel, para pagar seis parcelas de uma dívida trabalhista de R$ 29 milhões. Esta quitação gerou R$ 753 mil em honorários às advogadas Eduarda Pinto da Cruz, irmã do desembargador do Trabalho Marcos Pinto da Cruz, e Suzani Andrade Ferraro, ex-mulher do advogado de Witzel, Manoel Peixinho.
O caso Pró-Saúde é um dos focos de uma investigação sobre tráfico de influência no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT-RJ). A entidade é autora de uma das 34 ações inscritas no Plano Especial de Pagamentos do Tribunal, destinado a centralizar os pagamentos dos grandes devedores trabalhistas. Em março deste ano, passou a quitar as dívidas trabalhistas com dinheiro repassado diretamente pelo governo estadual. A empresa alegou que tinha direito ao repasse por ser credora do Estado, mas um documento já colhido pelos investigadores, assinado pela procuradora do Estado Renata Cotrim Nacif, revela que o repasse do Pró-Saúde foi autorizado sem esperar pelo julgamento de ações que discutiam entre as partes, na Justiça Estadual, o valor correto da dívida.
“Assim, embora haja a possibilidade de constituição de eventuais créditos pela empresa contratada ao longo da execução do contrato e mesmo após seu término, isto não decorre, automática e necessariamente, da existência de faturas pendentes de pagamento, como visto”, assinalou a procuradora. A investigação ainda não apurou quem foi o responsável pelos seis repasses no valor total de R$ 6,7 milhões.
A partir da colaboração premiada do ex-secretário estadual de Saúde Edmar Santos, a Procuradoria Geral da República (PGR) apura se algumas das empresas favorecidas no Plano Especial de Pagamentos do Tribunal usaram recursos estaduais para quitar os seus débitos, mesmo sem esse direito, pagando honorários elevados a advogados com laços de parentesco com desembargadores do TRT ou ligadas ao governador afastado Witzel.
A centralização de execuções trabalhistas, a cargo da Caex, uma unidade vinculada à Presidência do TRT, começou com os clubes de futebol, para impedir que as elevadas dívidas trabalhistas e os constantes bloqueios judiciais de bilheterias quebrassem as equipes. Quando uma empresa consegue centralizar as dívidas, todas as execuções pulverizadas em varas de trabalho ficam suspensas. A inclusão no plano é vantajosa por impedir bloqueios inesperados na conta corrente. Desta forma, a firma consegue pagar as dívidas em parcelas e manter as operações comerciais sem problemas.
A investigação sobre o plano especial do TRT-RJ está no mesmo inquérito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que afastou o governador Witzel. Além dele, correm ainda quatro sindicâncias — três abertas no próprio TRT e uma no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — para apurar irregularidades na centralização e o envolvimento de dois desembargadores, Marcos Pinto da Cruz e Fernando Zorzenon — ex-presidente do TRT e responsável pelo ato que instituiu a centralização em 2017 —, no caso.
O plano especial foi deferido à Pró-Saúde, em 16 de março de 2020, pelo presidente do TRT, desembargador José da Fonseca Martins Junior. Um detalhe chamou a atenção dos investigadores: originalmente, a entidade declarou que pretendia recolher mensalmente ao TRT R$ 941 mil, em 30 parcelas. Mas o Fonseca Martins, deferiu um valor maior (R$ 1,129 milhão mensal), para incluir os honorários de 20% acordados com as advogadas. Se as 30 parcelas fossem pagas, elas levariam um total de R$ 5,6 milhões.
Advogados ligados a desembargadores
O objetivo de uma das sindicâncias no TRT é apurar eventuais irregularidades praticadas no setor responsável por centralizar as execuções trabalhistas de grandes devedores. A presidência do TRT1 também instaurou sindicância para apurar irregularidades supostamente praticadas pelos desembargadores citados na cautelar do Ministério Público Federal (MPF), Fernando Zorzenon e Marcos Pinto da Cruz, cuja casa e o gabinete sofreram busca e apreensão em 28 de agosto.
Eduarda Cruz, irmã de Marcos Cruz, representa mais empresas de mais três ações cadastrados no plano — MPE Engenharia, Atrio Rio Service Tecnologia e Serviços (do empresário Artur Soares, o Rei Artur) e Consórcio Transcarioca (e outros).
Já o advogado Marcello Cavanellas Zorzenon da Silva, filho do ex-presidente do TRT-RJ Fernando Zorzenon, advoga em seis processos — Consórcio Internorte de Transportes, Serede Serviços de Rede, Associação de Ensino Superior de Nova Iguaçu (Sesni/ Unig), cujo ex-reitor administrativo José Carlos de Melo foi preso pela Tri In Idem, Viação VG, TB Transportes Blanco/Unirio Transportes e Centro Educacional Realengo.
De acordo com a Procuradoria Geral da República (PGR), que conduziu a Tris in Idem, a operação que afastou Wilson Witzel, o esquema favorecia organizações sociais com dívidas trabalhistas e que tinham, ao mesmo tempo, créditos a receber como !restos a pagar” do Estado. Em vez de a administração pública pagar diretamente às OSs, seriam feitos depósitos judiciais para quitar o débito trabalhista pelo plano especial.
Para participar da manobra, sustentou a PGR, a OS teria que contratar a irmã do desembargador, Eduarda Pinto da Cruz, e outros advogados ligados aos gestores do estado. Documentos obtidos pelo GLOBO mostram que ela e Suzani Ferraro, que nem sequer é cadastrada para atuar no TRT, receberam R$ 752,9 mil correspondendo a quatro prestações iniciais da dívida da Pró-Saúde.
Na lista dos 34 processos favorecidos pelo plano, também aparecem a Locanty, empresa de limpeza e conservação envolvida com irregularidades na Prefeitura do Rio, a Reginaves, citada no escândalo de desvios patrocinados por Sérgio Cabral, e a AtrioRio, do empresário Mário Peixoto, um dos favorecidos com o esquema ligado a Wilson Witzel.
Outro lado
TRT diz que parentesco não caracteriza impedimento
O presidente do TRT-RJ, desembargador José da Fonseca Martins Junior, em nota, disse que o fato de Eduarda Pinto da Cruz ser irmã de um dos desembargadores do Tribunal “não caracteriza hipótese de impedimento ou suspeição em relação ao cargo de presidente, bem como em relação a qualquer outro magistrado do Tribunal”.
Sobre o caso Pró-Saúde, disse que a organização é credora do Estado do Rio e, do valor devido, “seriam pagos créditos trabalhistas de empregados contratados pela OS. Assim, após o deferimento do Plano Especial de Pagamento Trabalhista pelo TRT, o Estado passou a depositar os créditos da Pró-Saúde para o pagamento aos trabalhadores”. O plano, segundo ele, foi deferido em março de 2020 e encontra-se suspenso desde 31 de agosto “por dever de cautela, a partir das notícias veiculadas na imprensa”.
De acordo com a Assessoria de Imprensa do TRT-RJ, um dia após a veiculação das primeiras notícias sobre eventuais irregularidades, a Presidência do Tribunal determinou a intimação dos membros citados nas reportagens, para que apresentassem manifestação, no prazo de cinco dias. Em decorrência dessas manifestações, foi determinada a abertura de duas sindicâncias para apuração das condutas dos desembargadores citados.
Além disso, no âmbito da Corregedoria Regional do TRT-RJ, foi instituída comissão de sindicância para levantamento e análise dos atos e procedimentos adotados nos processos relativos aos planos de centralização de execução. “Todas as sindicâncias citadas estão em andamento e ainda no prazo para conclusão de seus trabalhos”, informou a nota.
Pró-Saúde
A Pró-Saúde, também em nota, disse que em relação ao Plano Especial de Pagamento Trabalhista, não recebeu “um único centavo de tal valor relativo aos pagamentos feitos aos trabalhadores”. A participação da Pró-Saúde, informou, “restringiu-se apenas na busca e contratação de escritório de advocacia especializado na área trabalhista, desconhecendo qualquer processo investigatório em curso”.
A nota acrescenta que “é fundamental destacar que o TRT-1 concedeu liminar reconhecendo a necessidade de melhor atender aos profissionais da saúde, bem como a existência do vultoso crédito que a instituição possui perante o governo fluminense e que o “Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro concedeu parecer favorável demonstrando a absoluta lisura dos atos praticados”;
A Pró-Saúde também informou que a entidade filantrópica prestou serviços de saúde em nove hospitais do Estado do Rio de Janeiro. “Desde 2012, a instituição passou a sofrer com a inadimplência do governo fluminense, deixando de receber o valor a que tinha direito, chegando a vultosa importância de mais de R$ 1 bilhão, por serviços efetivamente prestados, ainda que não recebidos, fato reconhecido pelo ente público”.
Em relação à Lava Jato, a Pró-Saúde informou que, desde 2017, “tem colaborado de forma irrestrita com as investigações e vem adotando ações para o fortalecimento de sua integridade institucional”.
Marcos Cruz
O desembargador Marcos Pinto da Cruz disse que não tem qualquer relação com a centralização, nome atribuído ao Plano Especial de Pagamento Trabalhista. Ele disse que a irmã, Eduarda Cruz, acumula 38 anos de experiência da advocacia. O desembargador disse que, em todo os processos da irmã, se julga impedido. Mas que só soube do caso Pró-Saúde depois da operação Tris in Idem. Ele negou qualquer tipo de envolvimento em esquemas de desvio de dinheiro público no governo Witzel.
Suzani Ferraro
A advogada Suzani Ferraro disse que os valores envolvidos na ação da OS Pró-Saúde foram submetidos e aprovados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Ela disse que a atuação no caso não foi diferente de outras ações nas quais advogou, uma vez que é especialista em direito trabalhista e previdenciário. No caso da Pró-Saúde, disse, a forma de pagamento foi um acordo entre as partes, não havendo relação com a denúncia contra o governador afastado Wilson Witzel. Ela disse que está separada há anos do advogado do governador afastado, Manoel Peixinho, não vendo sentido no vínculo.
Marcello Zorzenon
Em nota, Marcello Zorzenon disse que é advogado militante, com forte atuação na Justiça do Trabalho e na Justiça Cível; “Represento o interesse de diversas empresas. O meu pai jamais atuou em qualquer processo ao qual eu seja o advogado ou parte, isso não passa de uma falácia, denúncia infundada e despida de provas”.
Sobre o ato que instituiu o Plano Especial de Centralização, disse que o ato que criou a centralização é datado de 2007 e que previa dez anos para parcelamento dos débitos, sem qualquer garantia por parte das empresas requerentes: “Após, houve redução para oito anos e, posteriormente ,para seis anos, com exigência de garantia , através de direito real ou garantia bancária (fiança ou seguro). Hoje, o provimento prevê o pagamento o parcelamento em três anos, com exigência de garantia. Necessário afirmar ainda que todos os requerimentos são em regra, enviados ao MPT , que emite parecer favorável ou desfavorável ao procedimento”.
Fernando Zorzenon
O desembargador Fernando Zorzenon disse, em nota, que o filho, Marcello Cavanellas Zorzenon da Silva, “é advogado militante em diversas áreas da justiça, dentre elas, a Justiça do Trabalho. Nos termos do artigo 144, inciso III, do Código de Processo Civil, há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive". Em razão dessa vedação legal, disse que nunca atuou ou decidiu em processos patrocinados pelo filho.
Unig
Em nota, a Unig respondeu o seguinte: “A Unig foi incluída no plano especial de centralização das execuções trabalhistas em 06 de agosto de 2018, por decisão da Desembargadora Rosana Salim Villela Travesedo, Vice Presidente do TRT1. A concessão do plano foi confirmada em novembro, após parecer favorável emitido pelo Ministério Público do Trabalho. A quitação das parcelas mensais do plano é feita com as mensalidades pagas pelos alunos da Unig, que possui plena capacidade de pagamento, requisito principal para a obtenção do plano especial. Diante de ilações infundadas feitas em decorrência da operação Tris in Idem, a Unig faz questão de esclarecer que a sua inclusão no plano se deu de maneira absolutamente lícita e de acordo com a legislação aplicável”.
O Globo
Portal Santo André em Foco
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