Novembro 26, 2024

Sob pressão ambiental pela 2ª vez, Bolsonaro dirá na ONU que foi bem na pandemia e que Brasil alimenta o mundo Featured

Sob intenso escrutínio mundial por seu desempenho na condução do Brasil durante a pandemia de coronavírus e pelas queimadas na Amazônia e no Pantanal, ainda mais intensas do que em 2019, o presidente Jair Bolsonaro abrirá na próxima terça-feira (22/09), a 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas.

Em um discurso gravado ainda na semana passada, ele deve defender que o país não só teve um bom desempenho doméstico na crise sanitária como garantiu a segurança alimentar de um bilhão de pessoas ao redor do mundo graças ao agronegócio nacional, alvo real daqueles que criticam a atual gestão ambiental brasileira, segundo a interpretação do governo.

Condução da pandemia

Com mais de 4,5 milhões de infectados e 135 mil mortos por covid-19, o governo brasileiro adotou postura contrária a medidas de isolamento social e ao uso de máscara, recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e advogou por tratamentos à doença sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina.

Mas a recente tendência de queda no número de novos contágios e mortes no país deve dar a Bolsonaro subsídios para argumentar que a situação do Brasil parece sob controle.

Ele também deve dizer que graças à sua resistência em determinar a paralisação das atividades econômicas e ao auxílio-emergencial de R$ 600 mensais recebido por mais de 60 milhões de brasileiros, o chamado "coronavoucher", a economia brasileira seguiu em funcionamento e as perspectivas de recessão do país não são tão severas quanto as de outras nações emergentes, como a Índia.

O impacto do auxílio no bolso de parcela relevante da população é apontado por especialistas como uma das explicações para as taxas de popularidade atuais do presidente, que chegou a estudar meios para tornar permanente ao menos parte do programa.

"Bolsonaro vai defender sua atuação na pandemia e sugerir que as críticas a ela eram mera perseguição política", afirma a professora de relações internacionais Elaini da Silva, da PUC-SP.

O presidente deve lembrar ainda que, mesmo diante da crise, o Brasil cumpriu um papel pelo qual merece respeito internacional: forneceu alimentos para uma série de países no mundo. O presidente tem dito que se tivesse continuado a fazer demarcações de terra indígena, essa produção não seria possível.

"A ONU queria que nós passássemos de 14% para 20% de território demarcado. Falei-lhes: 'Não'. Nós não podemos sufocar aquilo que nós temos aqui que tem nos garantido a nossa segurança alimentar bem como a de mais de um bilhão de habitantes do mundo", afirmou Bolsonaro em discurso na sexta-feira, 18, em Sinop (MT).

No ano passado, para contrapor acusações de que desrespeitava os direitos dos povos indígenas, Bolsonaro levou ao plenário da Assembleia Geral a jovem liderança indígena Ysani Kalapalo, que hoje se diz decepcionada com o presidente. E em seu discurso, atacou o líder indígena caiapó Raoni Metuktire, a quem acusou de ser manipulado por ONGs e governos estrangeiros com interesses escusos na Amazônia.

Durante a pandemia, a tensão entre governo e os indígenas se intensificou. A Organização Panamericana de Saúde (OPAS), braço da OMS nas Américas, afirmou que as populações nativas têm sido cinco vezes mais atingidas do que a média da população brasileira. E em relatório lançado em agosto, o relator especial da ONU sobre direitos humanos e substâncias e resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, afirmou que "no Brasil, as comunidades Yanomami encaram uma crise existencial e sanitária pelo contato com mineradores ilegais".

Bolsonaro deve ainda dizer que as queimadas são processos naturais e que tem acontecido não só no Brasil, como nos Estados Unidos e na África. E que o agronegócio brasileiro é eficiente e não têm responsabilidade pela devastação. Como já fez no discurso na ONU no ano passado, Bolsonaro acusará os críticos de ter motivação protecionista. A pauta ambiental seria apenas uma desculpa para que países europeus fechassem seus mercados para produtos brasileiros.

Há cinco dias, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Dinamarca, Noruega, Países Baixos e Bélgica assinaram uma carta aberta endereçada ao vice presidente Hamilton Mourão em que se dizem "profundamente preocupados" com o desmatamento da Amazônia que "tem crescido em níveis alarmantes".

Quase 20% do Pantanal já foi destruído por incêndios. Já na Amazônia, as queimadas cresceram 12% esse ano. Mourão tem dito que o Brasil reconhece que há um problema, mas que não aceita interpretações "simplistas" do fato. Membros do alto escalão do Itamaraty que conversaram com a BBC News Brasil anteveem ao menos um momento de constrangimento brasileiro no evento.

Os diplomatas esperam ataques diretos ao país durante uma sessão da cúpula de líderes em biodiversidade. O chanceler Ernesto Araújo foi o escalado para rebater, em vídeo de 3 minutos, às possíveis críticas.

Líderes online

Pela primeira vez em seus 75 anos, a ONU não verá os discursos dos chefes de Estado ao vivo e presencialmente em sua sede em Nova York (EUA). Primeiro grande epicentro da pandemia em território americano, Nova York enfrentou um extenso período de quarentena que tem sido relaxado gradualmente.

Ainda assim, a ONU tem mantido boa parte de suas atividades diplomáticas em modo remoto. Apenas votações de resoluções em que não há consenso têm sido feitas por um integrante de cada delegação em plenário — a organização chegou a cogitar a possibilidade de votação online, mas países como a Rússia se opuseram por considerar haver risco de hackeamento.

E embora o presidente americano Donald Trump e ao menos uma dezena de outros líderes estrangeiros tenham expressado interesse de ir pessoalmente fazer o discurso, a organização da Assembleia Geral deixou claro que nenhuma autoridade seria dispensada de cumprir um rígido isolamento de 14 dias antes de poder se apresentar no púlpito, o que desencorajou os mandatários.

Normalmente apinhado de representantes, dessa vez o plenário da ONU terá apenas um representante da delegação fixa de cada país, responsável por apresentar o discurso de seu chefe de Estado antes da entrada do vídeo.

Menos agressividade

Integrantes do Itamaraty acreditam que o discurso do presidente será menos agressivo dessa vez do que no ano passado, quando ele quebrou o protocolo para afrontar nominalmente cidadãos de seu próprio país, como Raoni, e afirmou que sua eleição salvará o Brasil do socialismo. Alguns motivos explicam essa leitura. Naquele momento, poucos meses após a posse, argumentam os diplomatas, Bolsonaro precisava "marcar uma posição", "reposicionar o Brasil".

Agora é diferente. Nos últimos dois meses, o presidente tem adotado uma estratégia de comunicação mais moderada e menos verborrágica em suas falas públicas. Além disso, o próprio fato de o discurso ter sido gravado pressupõe a possibilidade de ensaio e de edição e evita mudanças de tom de último minuto, como aconteceu em 2019.

"Eu apostaria em uma atitude mais defensiva e menos virulenta. Digamos que um repeteco com menos brilho até porque ninguém deve dar muita importância ao discurso dele", afirmou o embaixador Paulo Roberto de Almeida.

Para a professora de relações internacionais Elaini da Silva, as ações de política internacional do governo no último ano, quando o Brasil passou a mostrar um alinhamento ideológico consistente com os Estados Unidos, acabaram por levar a um certo isolamento do país que devem tirar relevância do discurso de Bolsonaro.

"Pode haver até uma certa curiosidade antropológica das outras delegações. Mas tanto pela pandemia quanto pelas queimadas, o Brasil erodiu a autoridade que teria para falar aos outros países a partir de sua experiência, queimou muito 'soft power'", afirma Silva, mencionando um conceito da diplomacia que se refere à capacidade de influência cultural e ideológica de um país sobre os demais.

Trump

O discurso de Bolsonaro pode ser ainda eclipsado pelo de Donald Trump. Concorrendo à reeleição em menos de 50 dias, o republicano não deve desperdiçar a oportunidade de se dirigir diretamente ao eleitorado americano em seu discurso na Assembleia Geral da ONU.

Crítico ao multilateralismo, Trump tem atuado para fragilizar organismos internacionais como a própria ONU e, com mais intensidade, a OMS e a Organização Mundial do Comércio (OMC). No caso da OMS, o governo americano iniciou a retirada formal do país dos quadros da organização e não participa do consórcio de mais de 70 países para o desenvolvimento de uma vacina contra covid-19.

Trump acusa a OMS, a OMC e a própria ONU de terem sido ao menos parcialmente sequestradas pelos interesses chineses. No caso da OMS, o governo americano afirma que a organização foi "leniente"e "corrupta" na maneira como conduziu a crise do coronavírus, protegendo a China, que teria escondido a gravidade do vírus.

Entre diferentes delegações em Nova York existe a tensão de que em seu discurso na Assembleia, Trump possa ameaçar cortar fundos da ONU ou até algum tipo de retirada americana da organização. Essa poderia ser uma jogada política com ressonância em seu eleitorado. Trump afirma ser defensor dos Estados Unidos em primeiro lugar e explora uma certa confusão no público em geral sobre o que são organismos multilaterais e como eles lidam com a China, cuja aversão é hoje prevalente tanto entre republicanos quanto entre democratas.

O presidente americano ainda não definiu se fará seu discurso de forma gravada ou em transmissão online ao vivo.

"Se for ao vivo, as pessoas podem tratar como algo dito no improviso e não levar tão a sério. Mas se ele disser isso em um vídeo gravado, com um roteiro, é muito mais difícil retroceder ou ignorar ", disse Richard Gowan, Diretor do Grupo de Crises Internacionais da ONU ao site americano Político.

É também incerto se em seu próprio discurso Bolsonaro fará alguma menção à tentativa de reeleição de Trump, a qual apoia. Reservadamente, um embaixador brasileiro afirmou que qualquer menção seria totalmente não recomendada, especialmente porque Trump aparece em desvantagem nas pesquisas eleitorais e pode vir a perder para o democrata Joe Biden.

Um comentário sobre preferência por Trump em um evento de alto nível como a Assembleia Geral deixaria o Brasil marcado para estabelecer relacionamento com um novo governo americano, caso Biden vença.

"Mas a gente sabe como o Bolsonaro é. No apoio com o Macri, ele foi até o fim, mesmo quando já estava claro que ele ia perder a presidência argentina", diz o embaixador.

BBC NEWS BRASIL
Portal Santo André em Foco

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