Novembro 26, 2024

Argumentos oficiais para justificar MPs sobre Covid-19 divergem das posições de Bolsonaro Featured

Argumentos utilizados pelo governo nos últimos meses para justificar medidas provisórias enviadas ao Congresso Nacional relacionadas à pandemia do novo coronavírus contrastam com as declarações do próprio presidente Jair Bolsonaro sobre o tema.

O G1 analisou os motivos apresentados por integrantes e ex-integrantes do governo para enviar 67 MPs ao Congresso desde 20 de março – data em que foi decretado o estado de calamidade pública em razão da Covid-19.

Os textos divergem e até contradizem falas e práticas adotadas pelo presidente frente à pandemia. Bolsonaro defende a flexibilização do isolamento social e, desde abril, provocou aglomeração em diversas atividades públicas, nas quais chegou a abraçar apoiadores e conversar sem máscara com eles.

O presidente também é defensor da reabertura do comércio e disse que "talvez tenha havido um pouco de exagero" na maneira como a pandemia do novo coronavírus foi tratada. O Brasil pode atingir a marca de 100 mil mortos pela Covid-19 neste sábado (8).

Quando o vírus ainda não havia chegado ao país, mas já fazia vítimas em outras partes do mundo, Bolsonaro chegou a chamar a pandemia de uma "gripezinha" e afirmar que havia "histeria" em torno do alastramento da doença.

O presidente ainda rivalizou com governadores quando os estados começaram a adotar medidas de isolamento social e fechamento do comércio, consideradas por autoridades sanitárias, como a OMS, as mais eficazes na contenção do vírus.

No entanto, na medida provisória que abriu crédito para pagamento do auxílio emergencial a profissionais da cultura, por exemplo, o ministro Paulo Guedes reconheceu a necessidade do isolamento social e de se evitar aglomerações para a prevenção do contágio.

Em outra MP, o ministro associou uma eventual queda no número de mortes e de contaminados a medidas de quarentena e isolamento social, na contramão do que prega Bolsonaro (veja mais abaixo).

Uma medida provisória só pode ser editada pelo presidente da República. As regras previstas no texto passam a vigorar imediatamente após a publicação do conteúdo no "Diário Oficial da União", mas o texto precisa ser aprovado pelo Congresso em até 120 dias para não perder validade.

A Constituição define que a medida provisória deve atender a dois quesitos: relevância e urgência. Por entrar em vigor imediatamente, sem análise prévia, a Presidência da República precisa justificar esses critérios em documentos enviados aos parlamentares, chamados "exposição de motivos".

Esses ofícios são assinados pelo ministro da área relacionada à medida provisória. Em liberações de crédito, por exemplo, a descrição dos motivos cabe a Paulo Guedes. Em temas de direitos humanos, a exposição ficaria a cargo da ministra Damares Alves.

Aglomerações e isolamento social

Em 10 de julho, o governo publicou no "Diário Oficial" a medida provisória 990, transformada na Lei Aldir Blanc. O texto pedia crédito extraordinário de R$ 3 bilhões ao Congresso para ações emergenciais no setor cultural, incluindo o auxílio emergencial aos profissionais da área.

A exposição de motivos, assinada por Paulo Guedes, reconhece a necessidade do isolamento social e de se evitar aglomerações para a prevenção do contágio.

“A urgência é decorrente do quadro apresentado de rápida propagação da doença, que exigiu medidas de isolamento social e a contenção às aglomerações, necessárias à prevenção do contágio pelo coronavírus, atingindo todas as manifestações artísticas que, normalmente, ao serem realizadas, concentram público considerável”, diz um trecho da exposição de motivos.

Pouco antes, no fim de junho, Bolsonaro cumpriu agenda oficial no Ceará e gerou aglomeração. Ele chegou a retirar a máscara para gravar vídeos com apoiadores e posar para fotos.

Na medida provisória 936, que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda em abril, Guedes também cita o isolamento como causa para a redução do número de infectados.

“As medidas de isolamento e de quarentena necessárias à contenção da transmissão do vírus e, consequentemente, à redução no número de casos da doença Covid-19 e de mortes, provocaram um impacto abrupto e sem precedentes no setor produtivo e nas relações de trabalho, ao se considerar as normas trabalhistas vigentes”, afirmou.

A justificativa é semelhante à usada na MP 927, de março, que tratou de medidas trabalhistas durante a pandemia. Nela, o governo embasa a relevância da matéria na "necessidade de implementação de medidas urgentes e imediatas de isolamento dos trabalhadores em suas residências”.

Entre abril e maio, porém, o presidente fez diversos discursos sobre a necessidade de retomar a economia e manter estabelecimentos comerciais funcionando.

“Os governadores, cada um assumiu a sua responsabilidade e uma concorrência entre muitos para ver quem fechava mais, quem defendia mais a vida do teu eleitor, do teu cidadão do teu estado em relação aos outros. O governo federal nunca foi ao óbice. Se dependesse de mim, quase nada teria sido fechado, a exemplo da Suécia”, disse Bolsonaro em 14 de maio.

O próprio presidente, no período em que as MPs eram analisadas, participou de atos na Esplanada dos Ministérios em Brasília em que houve aglomeração. Sem máscara, Bolsonaro desrespeitava não só as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) mas um decreto do próprio governo do Distrito Federal, que definiu uso obrigatório do item nas áreas públicas da capital.

Na MP enviada ao Congresso em 23 de março para suspender o atendimento presencial para a realização de pedidos de informação, a exposição de motivos assinada pelo ministro Wagner Rosário, da Controladoria Geral da União, reconheceu mais uma vez a necessidade de o cidadão reduzir deslocamentos e exposições.

“Em primeiro lugar, entende-se necessário suspender o atendimento presencial para a realização de pedidos de informação, visando a preservar tanto o servidor atendente, quanto o cidadão, que deve reduzir deslocamentos e exposições no período”, escreveu o ministro.

Enquanto isso, Bolsonaro resistia à implementação do isolamento social, propondo uma modalidade “vertical” de quarentena, na qual apenas grupos específicos ficariam em casa. O presidente também defendeu a reabertura de comércios cujas atividades são consideradas essenciais em meio à alta do número de casos de contaminação.

“Tem que enfrentar as coisas, acontece. Eu tô no grupo de risco. Agora, eu nunca negligenciei. Eu sabia que um dia eu ia pegar. Assim como vocês, acho que quase todos vão pegar o vírus um dia. Tem medo do quê? Enfrenta”, afirmou o presidente nesta sexta-feira (31) em viagem a Bagé, no Rio Grande do Sul.

A viagem foi uma das primeiras após o presidente se dizer curado do coronavírus. Bolsonaro anunciou que estava com a Covid-19 em 7 de julho e passou quase três semanas no Palácio da Alvorada – onde fez reuniões por videoconferência e foi flagrado conversando sem máscara com garis.

Mesmo em meio à pandemia e o número crescente de casos, o presidente seguiu reunindo simpatizantes próximo ao Palácio da Alvorada, onde faz discursos e ouve demandas. Enquanto recebeu resultados positivos para a Covid-19, Bolsonaro falou a esse público usando máscara, separado da aglomeração por um curso d'água em frente ao palácio.

Risco de contágio
O alto risco de contágio do coronavírus foi citado como justificativa em cerca de um terço das medidas provisórias editadas pelo governo no período.

Pelo menos 28 das MPs enviadas ao Congresso desde o decreto de calamidade, muitas delas pedindo autorização de crédito extraordinário, alertam que a situação de pandemia "representa alto risco à saúde pública, dado o alto potencial de contágio e o risco de morte".

Na justificativa da MP ao setor cultural, por exemplo, o governo ressalta a "caracterização desse problema de saúde pública como pandemia, com altos riscos à saúde, dado o alto potencial de contágio e o risco de morte, haja vista a disseminação da doença pelo país e pelo mundo”.

Em outra MP de crédito extraordinário, voltada especificamente ao combate da doença, o governo citou que, "conforme as informações atuais disponíveis e a experiência internacional, sugere-se que a transmissão pessoa a pessoa da doença ocorra via gotículas respiratórias ou contato".

Por outro lado, o presidente Jair Bolsonaro, reiteradas vezes, minimizou o risco de contágio da doença e, na contramão do que pregam as autoridades sanitárias, resistiu a usar máscara em público.

Além das manifestações a que comparecia sem usar equipamentos de proteção ou se distanciar do público, Bolsonaro passeou por Brasília e frequentou comércios já nos meses de pandemia. Em uma das ocasiões, chegou a coçar o nariz e cumprimentar pessoas em seguida, sem higienizar as mãos.

A prática recorrente levou até a uma disputa judicial. Acionada, a Justiça Federal no Distrito Federal, em uma decisão liminar (provisória), determinou, em junho, que Bolsonaro deveria usar máscara sob pena de multa diária de R$ 2 mil.

A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu, e a decisão da Justiça acabou sendo derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).

O argumento foi de que já havia um decreto obrigando os moradores do DF a usarem máscaras em locais públicos e, por isso, a regra não precisaria ser reforçada pela Justiça.

G1
Portal Santo André em Foco

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