Novembro 26, 2024

Mais de 70 morrem em onda de violência na África do Sul

Poucos mercados se arriscam a abrir as portas nesta quarta-feira (14) na cidade de Durban. Faltam vários produtos, funcionários e há longas filas nas portas. Parte da população já enfrenta dificuldades para comprar comida, depois que o comércio foi saqueado em várias cidades nos últimos dias e caminhões foram incendiados em estradas da África do Sul. Muitos desses veículos carregavam mercadorias para abastecer supermercados.

Por conta da crescente violência, diversas empresas seguem com as portas fechadas. Hospitais e postos onde vacinas contra o coronavírus estão sendo aplicadas não funcionam como deveriam, porque muitos trabalhadores não estão conseguindo se locomover, já que não há transporte público circulando nas ruas das cidades onde o caos se instalou.

Até terça-feira (13) à noite, 1.234 pessoas haviam sido presas pela polícia, acusadas de envolvimento nos protestos e saques, que terminaram, também, com a morte de 72 pessoas, segundo as autoridades.

Enquanto ainda não se sabe, ao certo, o tamanho do prejuízo para a já fragilizada economia do país que, atualmente, tem uma das mais altas taxas de desemprego do mundo (32%), um produtor rural teve que jogar fora 28 mil litros de leite na província de KwaZulu-Natal. Segundo a imprensa local, Rob Stapylton-Smith disse que não teve como entregar o produto aos clientes e o leite acabou estragando. Foi nessa província que os protestos começaram, na sexta-feira (9), conduzidos por apoiadores do ex-presidente sul-africano Jacob Zuma, preso na semana passada, aos 79 anos.

Considerado um herói por muitos negros por ter lutado ao lado de Nelson Mandela contra o apartheid, regime de segregação racial que vigorou no país até o início dos anos 1990, Zuma foi presidente da África do Sul entre 2009 e 2018, período em que viu seu idolatrado nome passar a estampar manchetes sobre escândalos de corrupção. Ele venceu duas eleições, mas não terminou o segundo mandato. Alvo, na época, de quase 20 processos, foi forçado pelo partido Congresso Nacional Africano (o mesmo de Mandela) a renunciar ao cargo, tendo sido sucedido pelo vice, Cyril Ramaphosa, atual presidente do país.

Pena por corrupção
Zuma recebeu uma pena de 15 meses de prisão por não ter prestado esclarecimentos a uma comissão judicial que investiga denúncias graves sobre um esquema de corrupção no governo dele. A investigação ficou conhecida como a “captura do Estado”. A decisão de mandar prender o ex-presidente foi do Tribunal Constitucional, a corte mais alta da África do Sul.

Zuma se apresentou à polícia na quarta-feira à noite, pouco antes de terminar o prazo para que se entregasse. Enquanto a defesa dele tenta soltá-lo por vias legais, com recursos, seus apoiadores saíram às ruas, se mostrando indignados e dispostos a tudo para ver o líder solto.

Os protestos não se limitaram à KwaZulu-Natal, onde vive grande parte dos zulus, uma das maiores etnias da África do Sul. Jacob Zuma é deste grupo étnico. No fim de semana, protestos passaram a ser registrados, também, em cidades de outras províncias, como Gauteng.

Durante transmissões ao vivo nas TVs sul-africanas, os repórteres mostraram a confusão em Alexandra, uma das comunidades mais antigas de Joanesburgo, e em um centro comercial que foi saqueado em Soweto, região emblemática que foi palco de grandes protestos de negros que lutavam por liberdade durante o apartheid. Nelson Mandela morou nessas duas comunidades, que nos últimos dias teve lojas saqueadas por quem parecia não se importar com o risco de também ir preso pelo que fazia diante das câmeras.

Além de alimentos e roupas, bebidas alcóolicas e até eletrodomésticos estavam sendo carregados pelos saqueadores nas ruas. Durante uma transmissão ao vivo de uma TV, um homem tentava colocar dentro do próprio carro uma gigantesca e moderna televisão que não passou pela porta de trás do veículo. Ele teve paciência e tempo para esvaziar o porta-malas até conseguir levar, ali, a grande aquisição.

Na segunda-feira à noite, o presidente sul-africano fez um pronunciamento em rede nacional, um dia depois de ter - mais uma vez - se dirigido à nação para estender as medidas de circulação no confinamento nacional obrigatório, em vigor desde março do ano passado, por conta da pandemia. Só que desta última vez, o assunto foi o cenário de caos que se espalhou, gerando prejuízo, insegurança e preocupação.

Exército nas ruas
Ramaphosa decidiu mandar 76 mil homens do exército para as ruas de cidades das duas províncias onde houve mais protestos e saques: Gauteng e KwaZulu-Natal. O presidente pediu calma à população e disse que as autoridades não vão tolerar mais violência. Ele lembrou que toda essa confusão vai atrapalhar a campanha de vacinação contra o coronavírus e ressaltou o risco de o país, que enfrenta a terceira onda de infecções, aumentar ainda mais a quantidade de novos casos de Covid-19 nesses tumultos. “Os motivos alegados para a violência em KwaZulu-Natal não podem ser usados para legitimar o vandalismo e a violência pública”, disse Ramaphosa.

Na análise do historiador sul-africano Benjamin Vogel, essa pode ser a pior crise interna da África do Sul desde o fim do apartheid. “Há muita violência nas ruas de duas das maiores cidades (Durban e Joanesburgo). A gente tem uma campanha contra a democracia, contra a lei e uma expressão muito grave da nossa crise social e econômica”, disse.

Em Durban, a reportagem esteve em Bluff, bairro residencial perto da praia, onde muitos moradores passaram a terça-feira em busca de algum mercado aberto para comprar comida. A situação afetou quem dirigia carro popular, de luxo ou se arriscava a pé pelas ruas vazias da área. Dois pequenos mercados estavam abertos. As prateleiras de um deles ficaram vazias no início da tarde. No outro, havia fila na porta.

Neste bairro há dois centros comerciais com dezenas de lojas e supermercados que foram fechados por conta do medo dos saqueadores. Desde o fim de semana, comerciantes estão em frente a esses locais, armados, prontos para proteger suas empresas a qualquer custo. Quase todos são brancos, mas entre eles há também indianos. A África do Sul tem uma das maiores comunidades de indianos fora da Índia e a maioria vive em Durban.

Presença de milícias
Essas pessoas estão carregando facas, revólveres, tacos de beisebol, golfe ou pedaços de pau com pregos. Em uma esquina da Grays Inn road, um grupo de civis mascarados e armados chegou a montar uma barricada, parando carros com ocupantes que consideravam suspeitos. Faziam o mesmo com alguns pedestres. Um idoso branco, que se comportava como um dos líderes do grupo, não quis se identificar e reprimia qualquer “estranho” que tentasse fotografar ou gravar imagens no local. “Não somos racistas, não tem só branco aqui no nosso grupo. Só queremos proteger nossas propriedades”, disse. Mas apenas negros eram abordados por eles, que vêm se comportando como milicianos, patrulhando as ruas da redondeza armados como se policiais fossem.

Eles intimidam os que abordam e fazem perguntas como se tivessem o direito de controlar a circulação na área. Três jovens negros, por exemplo, chegaram a ser impedidos por este grupo de seguir na direção que caminhavam. Um idoso, também negro, foi o único visto pela reportagem que afrontou o grupo de maioria branca lembrando que não estavam mais nos tempos do apartheid e que ele era livre para andar pelo bairro onde morava. Neste mesmo grupo, jovens também carregavam sjamboks, uma espécie de chicote que era usado por policiais brancos nos tempos do apartheid para reprimir os negros.

Na visão do historiador Benjamin Vogel, a polícia sul-africana infelizmente não tem capacidade de conter a violência nessas regiões. Isso acaba dando espaço para as milícias. “E há um elemento xenófobo no discurso de Zuma de ser contra o monopólio do capital branco e estrangeiros. A tensão racial é grave”, completou.

Historicamente, a relação entre zulus e indianos em Durban já é difícil, assim como a de negros e brancos na África do Sul. “Há uma grande possibilidade de conflito racial aberto entre negros e indianos e também entre negros e brancos em KwaZulu-Natal. Acho que muita gente vai morrer. E talvez semana que vem a região tenha uma crise de fome. É muito grave”, conclui o historiador.

RFI
Portal Santo André em Foco

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