Setembro 30, 2024

Bolsonaro inflou valores transferidos a estados e municípios; recursos poderiam ser usados também fora da Saúde Featured

Embora o governo federal tenha repassado R$ 113,4 bilhões em 2020 para auxiliar estados e municípios no combate à Covid-19, a verba específica para a área de Saúde foi de R$ 42,1 bilhões, pouco mais de um terço do total transferido. O presidente Jair Bolsonaro e aliados sugeriram recentemente, ignorando a legislação do próprio Executivo, que governadores teriam aplicado incorretamente as verbas enviadas. Este será um dos enfoques da CPI da Pandemia no Senado, proposta inicialmente para investigar omissões do governo federal, mas ampliada para abarcar também a destinação dos repasses federais a estados e municípios — cujos valores foram divulgados de forma inflada pelo presidente.

Em março, Bolsonaro divulgou em suas redes sociais que os repasses aos estados teriam ultrapassado R$ 840 bilhões. O valor, no entanto, incluía transferências constitucionais obrigatórias, sem qualquer relação com a pandemia, e verbas como o auxílio emergencial, que não se trata de uma transferência a governos. Ao ler o requerimento da CPI, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), frisou que a investigação será restrita aos “recursos da União repassados aos demais entes federados” e justificados pela pandemia, quase integralmente oriundos de créditos extraordinários.

Em ataques a governadores, Bolsonaro também alegou que os recursos vêm sendo utilizados fora da área de Saúde, por exemplo, para pagamento de folha salarial. A prática, contudo, não é vedada pela Lei Complementar 173, sancionada pelo presidente em maio de 2020, que destinou R$ 60 bilhões a estados e municípios. Deste valor, R$ 10 bilhões eram carimbados na Saúde, inclusive para despesas com pessoal no Sistema Único de Saúde (SUS). Os R$ 50 bilhões restantes, pouco mais da metade reservada aos estados, tinha o objetivo de “enfrentamento à Covid-19 e mitigação de seus efeitos financeiros”.

Além disso, o governo federal destinou outros R$ 15 bilhões como “compensação da variação nominal negativa dos recursos repassados pelo fundo de participação”. Foi uma espécie de “reequilíbrio” extraordinário desses fundos, que recebem verba obrigatória da União para o caixa de estados e municípios.

— Essa recomposição foi, guardadas as proporções, equivalente ao auxílio emergencial que milhões de brasileiros receberam para comprar comida, pagar a luz, a água, enfim, necessidades básicas. Não era um dinheiro carimbado para a saúde, como os bolsonaristas insistem — afirma o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB).

Leite entrou com representação contra Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar possível crime de calúnia e difamação após o presidente ter declarado, em março, que o governador “enfiou essa grana” em um lugar “feio”. No estado, dos cerca de R$ 3 bilhões recebidos em verbas extraordinárias, apenas cerca de R$ 820 milhões tinham de ser obrigatoriamente aplicados na Saúde. Esses recursos foram majoritariamente usados, segundo Leite, para “ampliar o número de leitos de UTI em mais de 160%”, além de compras de medicamentos, equipamentos e apoio a municípios.

Já os recursos não vinculados à Saúde serviram, de acordo com o governador, para repor perdas e evitar que os serviços públicos de outras áreas, como segurança e educação, “entrassem em colapso”.

Estados dirigidos por aliados de Bolsonaro também usaram a verba federal livre para cobrir a folha de servidores. No Rio, o governador em exercício Cláudio Castro (PSC), que assumiu em agosto, manteve a aplicação desses recursos na folha das polícias Militar e Civil, procedimento iniciado sob a gestão de Wilson Witzel, em junho. Ao todo, o Rio destinou R$ 1,6 bilhão dos recursos federais com despesas de pessoal e encargos sociais das polícias, de acordo com dados apresentados pela secretaria estadual de Fazenda.

O governo de São Paulo, chefiado por João Doria (PSDB), também informou ter usado a verba livre com o intuito de “compensar perdas orçamentárias decorrentes da queda de arrecadação" na pandemia, o que inclui “pagar salários de policiais e professores e cumprir seus contratos com fornecedores”. Em nota, o governo afirmou que “a destinação, ao contrário do que pregam teses bolsonaristas, não pode ser encarada como ajuda do Governo Federal”, e sim como parte do pacto federativo de distribuição de recursos.

“A verba destinada aos estados não pertence a governantes, correntes políticas ou ideologias. São recursos públicos do contribuinte para ações de interesse da população”, diz a nota.

Na avaliação de Leite, a tentativa de Bolsonaro de lançar dúvidas sobre gestores estaduais, inclusive através da ampliação da CPI da Pandemia, é uma “estratégia diversionista”.

— Que a CPI dê a oportunidade de discutir, além da questão dos repasses, as constantes agressões e mentiras, e também aqueles que se esquivam de suas responsabilidades legais de proteger a saúde e a vida dos cidadãos - afirmou o governador gaúcho.

O Tribunal de Contas da União (TCU) firmou o entendimento, em dezembro, de que os repasses da União não podem ser considerados “recursos próprios” dos estados, mantendo “natureza federal”. Na prática, isto significa que apurações sobre a aplicação dessas verbas cabem ao próprio TCU. Procurado pelo GLOBO, o órgão informou ter identificado, até o mês passado, 50 processos e representações por supostas irregularidades na aplicação da verba federal. O valor total apurado nesses processos, de R$ 356 milhões, corresponde a 0,03% da verba transferida a estados e municípios. Já houve decisões em pelo menos 16 desses processos; parte dos pedidos foram arquivados.

O valor de R$ 113,4 bilhões da ajuda federal foi levantado pelo GLOBO no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP), que reúne todos os repasses da União justificados pela pandemia. Os repasses têm origem principalmente em quatro ações orçamentárias: o auxílio a estados e municípios previsto pela Lei Complementar 173, de maio de 2020; a medida provisória (MP) 938, de compensação a perdas de recursos na pandemia; portarias do Ministério da Saúde; e a Lei Aldir Blanc, que destinou R$ 3 bilhões para socorrer o setor cultural em meio à paralisação de atividades.

As ações vinculadas exclusivamente à Saúde respondem por R$ 32,1 bilhões dos repasses do governo federal aos estados e municípios. A este número, O GLOBO somou os R$ 10 bilhões carimbados para a Saúde pela lei complementar, totalizando R$ 42,1 bilhões em recursos para esta área.

Diferentes bases do próprio governo federal apresentam dados divergentes, por aplicarem metodologias mais elásticas. O portal de transparência do Tesouro, por exemplo, inclui pagamentos como o auxílio emergencial e o BEm (Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e Renda) para chegar a um valor total de R$ 524 bilhões. Em março, a equipe do ministro Paulo Guedes (Economia) apresentou tabelas que apontavam uma ajuda de R$ 179,9 bilhões da União -- o valor, no entanto, inclui cerca de R$ 60 bilhões de suspensão de dívidas, o que não constitui repasse.

Já a plataforma Localiza SUS, abastecida com dados enviados pelos próprios entes da federação, diz que estados e municípios empenharam (reservaram para uso) cerca de R$ 30 bilhões dos recursos da União. A atualização desses dados, no entanto, segue ritmo mais lento do que o SIOP, devido aos trâmites burocráticos de cada estado -- o Rio, por exemplo, ainda não tem suas informações de 2020 no Localiza SUS.

— É como se o recurso saísse do governo federal marcado como a “mesada” que o pai dá para um filho. Só que cada filho vai ter seu próprio orçamento para aplicar essa “mesada”, e ainda precisará de autorização dos parlamentos locais para aplicar o recurso — explica o especialista em contas públicas Paulo Henrique Feijó. — Além disso, não necessariamente o dinheiro carimbado pelo governo federal como “Covid-19” será aplicado na “função Saúde”. Há municípios que não tinham casos de Covid quando os recursos começaram a chegar, outros sequer têm hospitais. O guarda-chuva “Covid” é mais amplo do que Saúde.

O Globo
Portal Santo André em Foco

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